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24 Sep
121. Entrelinhas

A Dedé passou na porta do meu quarto jogando uma indireta. Desde pequena eu lidei com esse jeito dela falar comigo. Tem gente que não entende essa língua. Por causa dela eu ganhei um super-poder. As pessoas falam e escuto mais de um significado. Mas o fato de ter um super-poder não me faz uma Poderosa Ísis. É que muito cedo eu decidi que não quero brincar disso.

- Mas o que a Dedé falou, pequena maria?

- Hãm, nunca vai aprender a cuidar das coisas… Mas eu ouvi assim, ó, menina, coloca essa bagunça pra dentro dos armários. 

O fato é que eu nunca aprendi a guardar as bugingangas, cuidei de colocar coisas pra fora, esvaziar até não saber o que fazer com todo o vácuo das gavetas. Nos últimos tempos tenho olhado o quantas coisas eu coloquei pra fora durante a pandemia. Esse tempo se tornou um tempo de vazios profundos. Mas até chegar no nada, é preciso dar solavancos nas gavetas mais emperradas, abrir cofres com segredos enferrujados. 

Nessa expedição eu encontrei fantasmas, mortos vivos, cadáveres... Nas noites quentes, eles me assombram. O peso dos sonhos moem meus ossos, perturbam as manhãs, me tiram do eixo. Fico com medo de dormir, resolvo cantar durante a noite. A boca do violão mostra as coisas que não me servem mais, as cordas contam que não é questão de concertar, os calos dos dedos que trocam de pele a todo tempo, dizem quem fui e quem não sou mais. Vou dormir, um vazio me toma. Acordo melhor, algum silêncio me toma, até que venha a próxima indireta de algum outro lugar da memória.

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